28.6.09

Chove no Verão


Joan Miró : Vignes et oliviers



Tinha deixado de falar. As palavras fugiam-lhe, lentamente. Regressão intelectual, emocional, uma tela que perdia tinta na chuva carregada. O espaço tornava-se tempo e nunca parava. Regressou ao início de tudo para ver se se recordava do que era ser. Compreendeu alguns fragmentos. Outros pisava, sem ver, sentia apenas a analgesia. As borboletas eram brancas nesta altura do ano e o ar cheirava a terra molhada. Era tão crescido e ainda se revia na ascendência, uma inexorável tragédia. Não por lhe faltar imaginaçao, mas por lhe faltar coragem. Letras e mais letras que lhe fugiam. Entravam umas palavras e saiam outras. Pensava não ser capaz de abarcar todo o mundo, ainda acreditava no sacrifício; bem, já nem sabia no que acreditava. Acho que nunca acreditou em nada. O mundo é lábil, nada resiste ao calor.

Continuava apaixonado pelo mesmo homem. Uma misteriosa criatura, com odores sagrados, destilada ao longo da puberdade. Quando preparada, apropriou-se da identidade de um pobre qualquer para nunca mais o largar.

Já se tinha apaixonado por uma rapariga.

Um dia quebrou-se a pulseira e desde aí, tudo se libertou. Ficou vazio. Chorou a inocência perdida sob a máscara do primeiro amor. Decidiu preocupar-se com outras coisas. Calar-se, esquecer as primeiras palavras. Ninguém amaria uma infância perdida.

Cresceu-lhe o corpo. A mentira crescia-lhe nos livros. Estabelecia imagens, padrões, adequava o seu espírito, preparava-se.

Nada o podia preparar para aquele embate. O vazio que existe na escolha. As possibilidades, a conversão do tempo em espaço.

A primeira amizade, o primeiro amor, o primeiro cigarro, o primeiro terror de morrer, o primeiro concerto, a primeira ida à discoteca, a primeira ameaça de morte, a primeira mentira, o primeiro namorado, a primeira vez que fez sexo, a primeira desilusão, a primeira vez que conduziu, a primeira vez que quase morreu, a primeira vez que fez amor, a primeira vez que fez ternura, a primeira vez que comeu comida indiana, a primeira vez que se lembrou de fazer tudo pela primeira vez e a primeira vez que se esqueceu; até quem sabe um dia conduza bem pela primeira vez.

São somente choques eléctricos e um tema de fundo leve e monótono. Chuva que cai num chapéu.

Ainda tem de aprender que há mais para além das valências bom e mau.

Ainda tem que aprender a ouvir.

E ainda há tempo, algum pelo menos. Tempo para ter mais tempo.

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